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Wilson Coutinho, 1989

[texto para a exposição individual de Ascânio MMM no Instituto de Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro, de 22 de novembro a 13 de dezembro de 1989]

O construtivismo tem sido visto mais como uma estratégia estética dentro do modernismo artístico. Do construtivismo russo ao plasticismo de Mondrian, as suas operações ampliaram o puramente plástico para uma dimensão social crucial, definindo com as suas obras, um valor deontológico. O construtivismo estabeleceu a relação entre sujeito e obra, artista e produto, fruição e espectador, de modo a eliminar o feixe vitalista no qual submergiu boa parte do pré-modernismo e do modernismo.

O vitalismo, contudo, liberava o espírito moderno para uma espécie de nudez do id, para usar uma palavra cara aos freudianos. Esta operação iria fundir-se também com a chamada desrepressão da vida moderna, de modo que as obras ou os movimentos de caráter vitalista obrigavam, na sua economia, a imersão do sujeito na precariedade do mundo, que poderia ser o Mal, o Abismo ou a Falha.

O subjetivismo, às vezes o mais radical, ilustrava a maneira com que poderiam ser restauradas ou auscultadas as batida rítmicas e um mundo oco, falhado na sua natureza. É verdade que o construtivismo reconheceu a irrealidade do mundo, esse cenário à la T.S. Eliot, mas manobrou contra o que era sensório, emocional, fugaz, e contra tudo que servia de plataforma para a impulsão dos instintos.

O construtivismo, ao contrário do vitalismo modernista, pautou-se por uma inabalável confiança no homem moderno. Esse otimismo foi ético e manobrou contra o fundo abismal em que a condição humana fora vista pelo modernismo. A modernidade construtiva inspirava-se num otimismo ético: o homem, a arte, a forma possuíam um sentido. Mais ainda: contra a crise existencial do homem moderno, o construtivismo apresentava a beleza da ordem como um axioma ético. A arte não era uma utopia da salvação, mas de realização.

O construtivismo veio a ter uma importância vital no Brasil a partir dos anos 1950, já que ele foi marcado basicamente por dois eventos: Primeiro, a reavaliação da história da arte moderna, a influência da arte moderna, a influência do construtivismo russo cuja leitura produtiva feita pelos artistas neoconcretos brasileiros produziu uma atualização modernizante e criou novos procedimentos para a arte brasileira; foi no país, a primeira leitura positiva do cubismo, expelindo o mimetismo da forma moderna e procurando ciar padrões formais originais como também revitalizou, à sua maneira, a relação arte e vida sem ser um mero paradigma do surrealismo, que atuara nesse sentido. O segundo evento é a criação de Brasília, emblemática para sacudir o país de seu passadismo e lançá-lo no forno da industrialização.

A partir de Brasília, o construtivismo funcionou como uma “idealidade” de um país do futuro, basicamente otimista, reformador social e economicamente transformando-se em uma “objetividade” impregnante, e acabando por ser uma maneira de ver e fazer arte, suturando o caos do sujeito moderno e o caos da realidade brasileira. O construtivismo brasileiro acabou não derivando, em geral, para um puro formalismo ascético, nem terminou infiltrado de um misticismo religioso, caro a um certo plasticismo geométrico.

Ele objetiva e idealiza a realidade brasileira, mas com uma adição específica: paradoxalmente, aqui o construtivismo assuma uma certa “loucura” no seu projeto.
Ele se caracteriza por uma espécie de “torção” lúdica, que o faz singular entre os dois paradigmas internacionais de mesma família. O construtivismo brasileiro assume um caráter ético no fazer, mas também uma sensualidade prazerosa no ver: parece um geômetra que joga dados.

É diante desse contexto brasileiro que é preciso situar o que foi a estratégia de Ascânio, um dos “construtivistas sem manifesto” como o situou em recente exposição, a crítica Ligia Canongia. Nos anos 1960, ele é um artista que resolutamente não aceitou a maré da nova figuração então em voga. Acentuando o processo construtivo, ele o mantém na sua continuidade. Frederico Morais caracteriza-o como “pobre” na mesma linha de um pintor como Volpi, onde o aspecto artesanal do trabalho assume importância primordial. Volpi trabalho com a antiga técnica da têmpera feita com ovo, mais fortemente fazendo uma pintura ultra-sofisticada.

Ascânio então trabalhava com um único elemento: a ripa. Com esta materialidade mínima, Ascânio criava sinuosos movimentos, abria-as para curvas, semi-curvas, sinuosidades, volutas. Um construtivismo da torção, do equilíbrio como suspensão para o vôo, para o arrojo da matéria que vai para o espaço como que para explodir e, ao mesmo tempo, produzem tensão e harmonia. A torção calculada desregulava o olhar, introduzindo o espectador no jogo entre rigor e ordem. Dai surge a estratégia de Ascânio: um barroquismo estrutural. Ao mesmo tempo, tais obras são despojadas; elas articulam o seu próprio ritmo; não estão presas a nenhum ilusionismo. Ao contrário, são ordenações estruturais que geram a tensão formal das suas obras.

O trabalho com as ripas, serradas, furadas e coladas, é feito de modo que elas, devido a sua estruturação, criam um espaço que não previamente determinado. “O espaço não é uma ordem, já pronta, em que  os objetivos são sendo colocados. Ao contrário, é a ordenação dos elementos da obra que orienta a sua estruturação”, analisava o pintor Ronaldo do Rego Macedo em 1981. Mesmo o que é ótico nos seus relevos depende dessas estruturas em andamento, sintetizadas quase didaticamente nas suas famosas caixas lúdicas de 1968-1969, objetos que manipulados pelo espectador são geradores de complexas formas.

Por outro lado, a continuidade do trabalho de Ascânio abriu-se para uma espécie de fenomenologia do material. Nos seus últimos trabalhos o que ocorre é um desvelamento do material. Ascânio já não pinta de branco as suas esculturas e revelos; já não capta a luz e a sombra; ele deixa a madeira “decantar”, fazendo-a aparecer nas suas próprias cores e nervos. A madeira é, então, o objeto estético, por excelência, de suas esculturas, estrutural também a forma com que foram concebidas.

Nesse desvelamento de ir a madeira tal como ela é, a “coisa mesmo” para usar a expressão conhecida do fenomenólogo Edmund Husserl, a obra de Ascânio recebe um despojamento limite. Ao mesmo tempo, como vê-se nos seus atuais trabalhos, chamados de Piramidais, a tensão entre rigor e ludismo mantém-se, mas com uma diferença. A forma piramidal, por sua vez, sublinha uma solenidade. Hierática, podendo expandir-se ao infinito, se for ampliada, cada vez mais, a sua base, a forma piramidal expressa sua força pelo seu caráter místico, quase religioso. Como a Coluna infinita, de Constantin Brancusi, essa forma aspira ao Absoluto, ao desejo de desdobrar-se rumo ao céu, à totalidade. Daí, a potência dessa peça, de 4 metros de altura, feita de tubos retangulares de alumínio. Grande pirâmide erguida para o infinito, com seus grandes triângulos vazados, essa escultura de Ascânio acentua, de maneira grandiloquente, o processo atual do artista.

Embora as esculturas piramidais manifestem uma grande carga simbólica devido a sua forma – forma arquetipal, presente no arcaísmo do inconsciente e nas sagas míticas – elas pretendem ser apenas a poética do objeto. Expressando nada além da coisa, a  forma piramidal coloca o trabalho de Ascânio próximo à pureza do objeto. Com suas formas decupadas, vazados inquietantes, inesperados cortes, as novas esculturas de Ascânio podem ser avaliadas por dois processos: a diminuição da carga barroca dos primeiros trabalhos e um rigor maior na estruturação.

Com o calor da madeira ou o ascetismo do alumínio, a obra opera ainda com o vazado que rompe a estrutura pesada da pirâmide, tornando-a mais leve, evocando um “espaço de dentro”, um intimismo em relação a sua forma portentosa e mítica. A grande escultura de alumínio feita para espaços públicos ou jardins, acaba por reter dois movimentos: o que vem de fora, expressa pela sua grandiosidade de monumento, pela figura hierática, carregada de símbolos, e o que surge de dentro – efeito dos vazados – que permite a grande massa ambientar-se na paisagem, de se interpenetrar com a percepção do espectador, de entrar em jogo com ele e, com isso, subjetivas a forca poderosa da imagem mítica.

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