Ascânio MMM e
o claro enigma da luz
Ronaldo do Rego Macedo, 1981
[texto para a exposição individual de Ascânio MMM na Galeria Paulo Klabin, no Rio de Janeiro, de 21 de outubro a
6 de novembro de 1981]
Desde a exposição no MAM do Rio de Janeiro em 1976, Ascânio MMM confirmou pertencer àquela família de artistas para quem o trabalho se desdobra numa coerência límpida, resultado de um exercício lento, constante, diário. Sua obra, desde as primeiras construções, lá de meados da década de 1960, elabora-se a partir de um motivo central, sua razão de ser: a luz. Projeto coeso, claro, solar – e não poderia ser diferente – dosando na justa medida o saber e o fazer, a descoberta e os resultados já obtidos, a pesquisa e a experiência anterior. Creio que qualquer aproximação ao trabalho de Ascânio terá de levar em conta este fato. O artista é intuitivo, nele o cálculo e a ação caminham juntos. A empresa intelectual, formal, manifesta-se simultaneamente à operação concreta de elaboração da obra.
Mas este projeto para a luz implica também o seu avesso, o correlato necessário: a sombra. Em Ascânio, a gênese da obra é o jogo, a reunião cordial de forças oponentes. Jogo que nada tem com o passatempo, com o simples regalo visual descompromissado, porque é ele que sustenta a obra, reafirma o meu, o seu olhar, mantém em equilíbrio esta arquitetura delicada: forma visível do Jogo que rege o mundo, faz nascer a arte e nos burla soberanamente.
Fixemos, ainda que rapidamente, o sentido do jogo para o trabalho do artista. O jogo tem um sistema de regras que definem a perda ou o ganho. Aceitá-las ou transgredi-las pressupõe a liberdade do ato criador, liberdade corporificada em obra. A preparação da jogada, o cálculo, o blefe, os ardis do embate enfim, tudo isso diz respeito à administração do lance. Artista construtivo, Ascânio não necessita de muitos recursos formais e materiais para armar a jogada. O objetivo é, com o mínimo, atingir o máximo de expressividade. Para ele, muito é muito pouco. Tanto nos quadros quanto nas esculturas propriamente, o trabalho se realiza a partir de uma grande economia de meios. Um único princípio ordenador: o jogo. Um único elemento material: a ripa de madeira.
Para melhor apreendermos esta tensão em jogo de que a obra se origina, o ideal talvez fosse refazermos o caminho do ateliê. Não seria um trajeto em vão. Salas de exposição, galerias e museus, a par da função que desempenham, possuem a ingrata propriedade de domesticar a obra de arte. Produtos de um tempo em que ciência e técnica são o solo da verdade, e quantificação é a palavra de ordem, esses espaços transformam a obra em simples produto numerável, a ser classificado e posto em circulação no mercado. Mascarando sua gênese, rompem, portanto, com a relação estrutural e solidária que diz respeito à obra, sua elaboração, marchas e contramarchas.
Se pudéssemos abandonar por um instante a exposição, compreenderíamos que o ateliê é a condensação daquele fundo de onde surge a obra, espécie de orla ou moldura que a circunscreve. Outros círculos existem, é claro, mas este é talvez o mais próximo. Ali, à sombra, no silêncio, entre ferramentas à mão, serras, lixas, pincéis, filas de ripas contra a parede, fatias de madeira, seguiríamos os passos do artista em seu processo criador. Caminha da ambígua. Algumas vezes, ele sente-se em casa, relaxa, o olhar vagueia, alisa calmamente uma ou outra peça recém-terminada. Em outras ocasiões, intriga-se no meio do percurso, observa, se aflige, procura reorientar este ou aquele conjunto, faz, refaz. Algumas vezes acerta, a arte aparece. Outras, não. Ali, na verdade, as obras nunca estão definitivamente prontas. Algumas, no máximo, quase prontas. Outras tantas, abandonadas pelo meio, esquecidas. Todas disputam o olhar, um gesto. O ateliê é mais do que uma metáfora. Nele, se intensifica a força que pressiona o aparecimento da arte, daquilo que se esconde teimosamente, ao anunciar sua presença. Sombra da sombra. É necessário que o artista aceite a regra do jogo, dissimule algumas vezes. Que finja ver o que lá não está, que pressinta. Só assim, indiscretamente, esta ausência se revela. Este jogo é o mesmo para o observador.
É quase sempre a madeira, em ripas, que o artista emprega na feitura de suas pecas.
O perfil de alumínio aparece algumas vezes, mas é sobre a madeira que recai sua preferência. Tal escolha da madeira não é ocasional. Não se trata meramente de provar sua resistência, sua melhor adequação ao conceito formal – aquele valor maiêutico a que se referiu G. Dorffles. Carne rija da árvore, transformada em ripa frágil, a madeira é mais do que suporte. Corporifica, digamos, a relação primária com a Natureza. Lembremos que a raiz da palavra madeira é a mesma de mater, matéria. Podemos, assim, falar da matéria como substância, como elemento originário. Barro, terra, elemento plástico primeiro, sem o qual é impossível conceber a existência da obra. Massa primordial, coisa da natureza, que precisa ser informada, conformada,
porque só é apreensível em relação a uma forma. Referimo-nos aqui à forma significante e intencional. Não a que a natureza generosamente nos entrega ai pronta, mas aquela que vai surgindo ao pôr-se em processo o ato criador.
Pintadas de branco ou na cor natural, as ripas sobrepostas provocam variações rítmicas, captam as modificações de intensidade da luz. Luta de sombra e luz, energia que se manifesta. Luz, agente físico que permite o fenômeno visual, graças a ela travamos contato com as coisas. Agora, entretanto, sublinhemos a importância dessa outra luz, luz da obra, que pertence inteiramente a ela e àquele que a percebe, que está na dependência direta da matéria, de sua instável capacidade luminosa.
Está é, portanto, a matéria a ser transformada pela ação da Techné (Arte e Técnica). Ascânio procura refazer um percurso, tentando restabelecer essa união íntima e radical, tantas vezes oculta para a arte de nosso tempo. Para ele, a madeira tem valor instintivo, afetivo e racional. Português de origem, ao deixar muito jovem Fão, cidade natal, trouxe consigo a história dos antepassados, a experiência de seus familiares, marinheiros, carpinteiros navais. Entre o mar e o rio, será em Fão que o artista começará a descobrir a luz e outros segredos. Num relato seu, meio vadio, contava que aquelas praias, com outros garotos, divertia-se em espreitar os casais namorando nas dunas. Surpreendidos durante o jogo amoroso, assustavam-se, reagiam. Voyeur, olho atento. Já naquela época, treinava e aprendia certos lances.
A biografia do artista não explica sua obra. Nem se trata de explica-la aqui. Procuramos apenas mais uma aproximação. Um dado a mais que distenda os limites de uma exposição. Porque Ascânio, como esse outro português de nascimento, Joaquim Tenreiro (artista e sábio, profundo conhecedor dos mistérios da madeira), revela em obra grande fidelidade à sua origem, entendendo ai aquilo que herdou e o encontro com a nova circunstância, no Brasil, país por ele adotado. Não fosse simultaneamente ibérico e americano o barroquismo de suas fitas que se entrelaçam, dos fios que se perdem em emaranhados para reaparecerem mais tarde, seu apego à simetria que se desfaz e se recompõe, o revezamento do fundo e da forma, seu gosto pelo arabesco, curvas, ogivas, pelo mundo cheio e o vazio estremo. Encontramos sinais de um espaço árabe em sua obra, principalmente nos relevos de 1974-76 mais ou menos.
O trabalho de Ascânio desenvolve-se em dois setores: esculturas e relevos para a parede. Nestes últimos, as ripas sucedem-se lado a lado, organizadas em progressões verticais e horizontais. Superfícies estriadas, alternam em suas reentrâncias luz e sombra. Espaços amplos, potencialmente sem fim: dispensando a moldura, os quadros podem expandir-se para todos os lados. Cortes laterais, vazamentos na superfície articulam esses objetos com o espaço real. A superfície não é mais aquele dado pronto, palco privilegiado da representação. Sua função não é a de fundo, contra o qual se recortaria a forma, a figura da tradição icônica do quadro. A superfície é forma. Integra-se ao espaço arquitetônico, modificando a geometria do ambiente. É configuração que se projeta no espaço do espectador, espaço total, espaço do mundo. Tanto o quadro como a escultura nada representam. O dinamismo do ritmo a repetição periódica das unidades no espaço e no tempo, a alternância dos elementos construtivos são a própria morfologia do real em constante transformação no mundo contemporâneo.
Nas esculturas, por sua vez, é acionado mais intensamente o jogo de polaridades, o ritmo, a oposição entre reta e curva. Em torno de um eixo quase sempre vertical, as ripas ordenam-se em espirais. Formam colunas sem fim, volutas que ondulam, se encurvam para melhor captar a luz ou a sombra. Fitas contínuas que se dobram, se irisam ou projetam sombras ao redor de si no espaço que criam. Como os relevos, estas construções sustentam-se em permanente tensão. O trabalho realiza-se no ir e vir constante entre os pares de opostos. A esse respeito, poderíamos falar de uma poética da flexão, da torção e da dobra.
As múltiplas direções das sequências de ripas, os ritmos ascendentes e descendentes, o avanço e o recuo de planos que se ocultam e se revelam, todos esse movimento é vivido igualmente pelo espectador. Frente à obra, este último não pode permanecer passivo.
À procura de outros recantos, novas perspectivas, o espectador é forçado a deslocar-se diante do quadro, em torno da escultura. À medida em que se vai alterando o ângulo de incidência da luz e à medida que o espectador se movimenta, toda obra se transforma. Merleau-Ponty mostra que o corpo visível-e-vidente é o fundamento dessa conaturalidade entre o ato perceptivo e o objeto percebido: meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado no tecido do mundo e sua coesão é a de uma coisa. Mas já que se vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à volta de si.; elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo. O espectador é conduzido pelo olho que desliza suave ou vertiginosamente pelas superfícies. Em seu redemoinho, a obra jamais permitirá que se estabeleça o instante da visada definitiva. Não se trata, portanto, de qualquer movimento virtual, ilusório, mas real e que implica a estruturação de um espaço e de um tempo específicos. Para Ascânio, espaço e tempo não são dados exteriores. Fundam-se a partir da obra, em relação ao espectador. Vão aparecendo num fluir incessante, enquanto os pontos de vista se sucedem, enquanto outras extensões são buscadas. O espaço não é uma ordem, já pronta, em que os objetivos vão sendo colocados. Ao contrário, é a ordenação dos elementos das obras que orienta a sua estruturação.
Essa percepção do movimento permitiu ao artista passar facilmente à elaboração de
suas caixas lúdicas de 1968-69, entregues à manipulação direta do espectador.
Na obra de Ascânio MMM, o despojamento formal alia-se ao barroquismo das tensões. Mesmo nos trabalhos mais recentes, dos últimos dois ou três anos, o espaço não é estático, aprisionado em esquemas imutáveis. Neles, o dinamismo do ritmo torna-se bem mais sereno e a curva passa a ser, quase sempre, pura sugestão. As ripas são substituídas por chapas superpostas de madeiras e os planos recortam-se mais amplamente. Brancos ainda, seus últimos relevos reencontram aquele sentido do deserto, do vazio a ser preenchido pela sensibilidade a que se referia Malevitch. A luz é praticamente o único fator de dinamização do espaço, é o desenho. Pela alteração da luminosidade, as estruturas ganham ou perdem densidade e peso. Lembremos, mesmo de passagem, a história dessa espacialização total. Suas primeiras manifestações remontam a Mondrian, Malevitch (demonstrando que o espaço é um valor em si mesmo), à vanguarda russa, Rodchenko, Tatlin (contestando o quadro de cavalete com seus contra-relevos de 1914), aos construtivistas. Gabo e Pevsner, aliás, no Manifesto Realista de 1920, proclamam que o espaço e o tempo nasceram hoje. O espaço e o tempo: as únicas sobre as quais deveria se unificar a arte. Rejeitam a cor, a linha, o volume e a massa como elementos da criação. Afirmam somente o valor dos ritmos cinéticos, da profundidade, da criação do espaço, defendendo também o tom dos corpos, sua substância material que absorve a luz, esta, a única realidade pictórica.
Há afinidades profundas entre a produção russa desse período e certos setores da arte construtiva brasileira, principalmente seu caráter orgânico e vitalista. O fim do quadro como objeto de representação, sua redução ao quase nada que faz surgir o espaço, esses são alguns dos elementos que constituem o fundo contra o qual se destaca o trabalho de Ascânio. Reelaborando a seu modo algumas experiências, distinguindo-se de outras tantas, o artista conquista sua expressão pessoal. Na década de 1960, assiste atento o desenrolar de tendências: o ressurgimento da figuração crítica, as atitudes provocadoras da anti-arte, as simplificações minimalistas, todos os neo, pós, hiper, super ismos. O sentido do provisório, a tomada de consciência da instabilidade do real, atinge em cheio aquela década através do cinetismo internacional. É o momento de toda a parafernália eletromagnética invadir as salas de exposições.
A arte embarca na ruidosa celebração do império global da técnica. É aí que o escultor, afastado dos modismos, entregue à execução de seu projeto pessoal, afirma seu compromisso com o rigor, com as exigências do fazer diário. Diferente de outros artistas brasileiros e latino-americanos, não se deixou fascinar pelos materiais industrializados, pelos processos mecânicos. Frederico Morais, em 1976, referiu-se ao seu construtivismo como algo proletário e artesanal. Afirmou que a nudez sem disfarces da estrutura formal, o emprego de um material pobre, a opção pelo branco, a ausência de malabarismos conceituais e analogias sofisticadas é um compromisso com a nossa realidade cultural e social. O seu gesto criador tem muito a ver com a criatividade anônima de nosso povo, ao mesmo tempo em que se insere numa tradição especificamente da escultura, simultaneamente barroca e construtiva.
Ficamos por aqui. Uma certa estranheza ronda o espírito de alguns, toda vez que o artista plástico, recorrendo à palavra vem manifestar-se sobre o seu trabalho ou o de outro companheiro. Pressente-se qualquer traição, como se a obra, por uma espécie
de carência congênita, necessitasse do suporte linguístico para se tornar apreensível. Mal-estar curioso: se de um lado reafirma o poder da linguagem, de cujo cerco não podemos escapar, de outro, não implica uma superposição hierárquica da função verbal. Por ora, reconhecemos apenas que, diante da obra, percebe-se alguma coisa que a ultrapassa. Algo que, inseparável da obra mesma, desliza constantemente a cada aproximação. No território do não-discursivo, a obra supera o domínio todo-poderoso do inteligível, as fronteiras que separam o sentir do conhecer. O trabalho de Ascânio ilumina esse terreno.