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A razão como
dogma poético

Paulo Sergio Duarte, 2005

As esculturas de Ascânio MMM que se tornaram mais conhecidas, aquelas que estão mais presentes em espaços públicos, me parecem manifestações plásticas de partituras de Terry Riley ou de Steve Reich. A cor branca, evitando floreios cromáticos, a decalagem mínima do ângulo em progressão aritmética, diferenciando as sucessivas superposições dos elementos – as ripas –, mantendo sempre o mesmo deslocamento em torno do eixo gerando a torção helicoidal, o rigor disciplinado da estrutura, tudo lembra na sua concepção a música dos pioneiros do que veio se chamar música minimalista. Elegantes nas curvas, não escaparam de serem definidas como barrocas. (Aliás, vício brasileiro: por aqui, toda vez que o crítico vê uma curva decente prega-lhe a etiqueta de forte conotação histórica; e não haveria problema se o uso generalizado do termo não eclipsasse questões mais próximas.) Na verdade, as curvas de Ascânio, nas esculturas de ripas deslocadas, são suntuosas e ao mesmo tempo discretas, no sentido estrito da palavra, porque estão contaminadas pelo raciocínio lógico-matemático e poderiam, perfeitamente, ser representadas em claros algoritmos.[1] Lançam generosas senoides no ar procurando apoio em tangentes do solo. Em outros casos erguem-se verticais, como totens da razão, partindo da torção helicoide inicial para finalizarem, às vezes, em uma superfície retangular mais prolongada. Conviveram com uma experiência participativa no final dos anos 1960, trabalhos de exceção realizados em caixas que se deixam manipular pelo espectador. No entanto, mesmo neste caso, o jogo e o aspecto lúdico estão submetidos à assepsia geométrica, à estética requintada avessa a excessos subjetivos.

Pode-se ser tentado a buscar a ascendência formal dessas esculturas que Ascânio explora e desenvolve a partir da segunda metade da década de 1960 e durante a de 1970 em alguns trabalhos de Mary Vieira. Coincidência: o artista foi fortemente marcado pelas obras construtivas de Lygia Clark, apreciou a exposição de relevos de Sérgio Camargo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1965; no entanto, na época, ainda não conhecia a contribuição de Mary Vieira, que emigrara para a Suíça em 1951, e cuja obra até hoje, infelizmente, é rara em nossos museus e exposições.[2] A formação de arquiteto na Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois de frequentar por alguns anos a Escola de Belas Artes, o inevitável conhecimento da obra de Oscar Niemeyer, de Pampulha até Brasília, seriam razões mais próximas para a presença das curvas em suas esculturas que o longínquo século XVIII e suas cidades coloniais, não houvesse outro problema ainda mais próximo: como dar continuidade a uma imaginação construtiva depois das formidáveis aventuras do plano que a precederam nas esculturas de Amílcar de Castro, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Franz Weissmann? Como dar o próximo passo, senão experimentando mobilidades do plano, tornando-o maleável à lógica recursiva, no deslocamento sucessivo dos elementos justapostos no espaço, enfim à exploração das curvas? Ai está, a meu ver, a questão mais imediata da experiência de Ascânio em suas primeiras esculturas que se desdobram por mais de uma década: a solução escultórica de uma liberdade que rompeu com a rigidez ortogonal da arquitetura moderna na qual a curva estava, antes, exclusivamente na volumetria cilíndrica dos pilotis. A sinuosa cobertura estrutural da igreja da Pampulha, em Belo Horizonte; a cúpula da Oca, no Ibirapuera, em São Paulo, e as do Congresso Nacional; o perfil das colunas dos palácios e os arcos estruturais da catedral, em Brasília, são curvas mais presentes no pensamento plástico moderno, no Brasil, que as rocailles de nossas igrejas coloniais. Mas, acima de tudo, encontra-se o móvel imediato: a conversa com a própria tradição, então recente, de esculturas construtivas desenvolvidas no Brasil e a exploração deste imaginário.

 

Promovidas a variáveis livres do pensamento funcional que constrange a forma arquitetônica, as curvas de Ascânio transpõem as lições dos grandes escultores construtivos que o antecederam para um campo estético adversário pelo seu contexto. Desta fidelidade em dar continuidade ao construtivismo deriva a maior resistência da obra à sua inscrição histórica. Surgem num momento em que, de um lado, a nova figuração havia acabado de ocupar a frente da cena desde 1965, e de outro, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape transformavam seus ateliês em laboratórios de experiências de novas linguagens, afastando-se das explorações neoconcretas que consideravam esgotadas naquele momento. Some-se, ainda, o aparecimento de uma geração de novos artistas, em que a questão conceitual tem de se resolver em termos visuais, se possível com forte presença plástica, e não apenas em formulações teóricas, na qual se encontram Arthur Barrio, Waltercio Caldas, Antonio Manuel e Cildo Meireles, no Rio de Janeiro; ou Carlos Fajardo, Carmela Gross, Marcelo Nitsche e José Resende, em São Paulo. Diferente, a obra de Ascânio pertence ao prolongamento de um pensamento estético moderno que havia fincado pé no Brasil nos anos 50, cujo arco de experiências que se estendeu de Volpi até os relevos de Sérgio Camargo, no final da década de 1960, encontra-se defasado dos problemas formulados pela nova conjuntura cultural.[3]

 

Quando observamos retrospectivamente o percurso do artista verificamos que há mais de três décadas a obra reafirma as virtudes do construtivismo de modo quase dogmático, como quisesse prolongar o otimismo racionalista sobrepondo-se às mudanças do ambiente que explorava, por vezes, fronteiras bem distantes de preceitos cartesianos. Mantém-se expondo seu vocabulário nítido e claro, longe das transformações pelas quais passaram as linguagens da arte durante todo esse período. A falta de sincronia com as escolhas de quase toda sua geração, bem como o atavismo ao vernáculo construtivista característico da geração anterior, cujos grandes mestres na escultura – Amílcar de Castro e Franz Weissmann – davam continuidade coerente aos seus projetos iniciais, sem apresentar as rupturas presentes nas obras de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape, precisam ser examinados. Projeto e sistema de construção modular, que aparecem desde o início e perma-necem até hoje, testemunham o pensamento arquitetural que se torna mais evidente na forma a partir das piramidais da década de 1980. Essas obras são precedidas de me-ti–cu-losos estudos na prancheta nos quais todos os detalhes estão previstos e permitem uma antevisão da escultura no papel. A essas características temos de acrescentar a lógica estrita que descarta qualquer intervenção aleatória interna ao projeto: a forma é inteiramente controlada. Como elemento interno aleatório poderíamos apenas detectar a suave variação cromática da madeira quando o escultor, no final dos anos 70, começa a explorar a textura do material sem pintá-lo de branco. No entanto, logo depois, as oposições cromáticas das espécies diferentes de madeira são trabalhadas para resultarem em calculadas composições geométricas. De resto, o acaso fica reservado à exploração do jogo de luz e sombra, exterior à construção, muito atuante nas esculturas e relevos brancos. Essa fixação nos valores positivos de uma matriz racionalista exacerbada poderia ser a distância que toma o artista em relação ao ambiente cultural brasileiro na qual permanece o elogio da improvisação precária, herdado do capitalismo mercantilista colonial, muito diferente da crítica da norma e da regra em situações de capitalismo avançado, na qual o uso da improvisação e do acaso assume um caráter de invenção libertária – como no jazz e no informalismo –, ou da improvisação produtiva operada como estratégia de sobrevivência pelas populações mais pobres.

 

Além dessa permanente resistência da obra ao acaso e à improvisação, a construção modular precisa ser observada mais de perto. A presença de um módulo gerador primitivo é a outra invariante do trabalho. Existem exercícios paralelos, no princípio, como relevos em madeira pintada, mas mesmo nestes ocorrem, com freqüência, a presença de um módulo. Para cada forma buscada em períodos de experiências dilatados no tempo, o módulo atua. Um processo que já se estende por quase quarenta anos explorou apenas dois módulos – ripas e paralelepípedos vazados de alumínio -, à exceção de alguns relevos e das caixas participativas nos quais o artista fez uso da chapa de madeira. Esta permanência não é gratuita. Indica o sentido de uma investigação persistente da forma até que estejam esgotadas as possibilidades fornecidas por determinado material que é, sobretudo, seu DNA estético. Aponta, também, para a recusa da obra a se exibir como espetáculo de variedades, como um showroom de mercado subordinado aos fluxos da moda.

Na arquitetura moderna o módulo é qualquer unidade de medida que facilite a sua pré-fabricação. Assim o definem os dicionários especializados. Suficiente em termos técnicos, essa descrição elude o fenômeno estético. No caso de Ascânio, o módulo é célula-mater do pensamento formal. Mínimos indivíduos significantes que só vêem seu papel de produtores de sentido na organização coletiva nunca se encontram maquiados – sua individualidade discreta está sempre preservada na totalidade – portanto, estão longe de serem reduzidos a coadjuvantes manipulados como recurso de fabricação. Uma reciprocidade se estabelece numa ordem direta: para cada forma um comportamento do módulo, para cada comportamento do módulo uma forma.

 

A própria modificação do módulo pode ter despertado para as potencialidades de novas formas. É uma hipótese. Quando as ripas não foram mais pintadas e a madeira é explorada in natura vemos surgir, logo após, o uso das ripas, sem pintura, superpostas, assumindo volume e formas vazadas mais estáveis. Com o desaparecimento das ripas deslocadas e sua superposição, apagam-se as helicóides. As esculturas são agora cúmplices da força de gravidade e não parecem mais desafiá-la: querem todo peso para exibir seus mosaicos e relevos espaciais. Habitam, com vontade, o chão. Abandonam de vez a ascendência do plano para assumirem o volume disciplinado pelas virtudes ortogonais da nova disposição do módulo. As esculturas tomam corpo da mesma forma que as ripas ao não serem mais deslocadas: evidente consonância entre módulo e forma final. Por isso mesmo não abandonam o forte caráter geométrico.

Em alguns casos, elevam-se do solo para se transformarem em esculturas de parede.

 

Nesse caso, distanciam-se do pensamento espacial próprio da prática escultórica moderna para se aproximarem de desenhos em madeira. É um desenho sem lápis ou papel no qual o traço se materializa na espessura da madeira. O elemento orgânico de forte presença na textura do material não evoca qualquer “naturalização” da obra porque o sistema encontra-se sob o comando do raciocínio geométrico. As virtudes inerentes ao material estão presentes, manipuladas com destreza pelo artista, que sempre fez questão de efetuar todas as operações artesanais necessárias à realização de suas esculturas, mas constrangidas pelo rigor do traçado, sem simular em nenhum momento o trânsito impossível entre natureza e cultura. Esta última se reforça na ocorrência, nos títulos de obras, dos nomes das espécies: guataia (pau-marfim), acaju-catinga (cedro), jacarandá. Esta é a única aparição anedótica de uma intencional relação com o meio, assim mesmo pelo viés abstrato da língua. Com a simples madeira aparente, sua textura, suas cores, sem nenhum apelo figurativo, as esculturas tornam-se mais próximas, desligam-se de idéias platônicas e se efetivam numa geometria mais mundana, caem na terra, livres da pureza do branco, em mais uma demonstração que a forma sempre se realiza plenamente com a participação de todos os elementos materiais.

 

Da exploração das ripas de madeira sem pintura, na década de 1990, Ascânio parte para o módulo de alumínio vazado. Se o alumínio, pelas suas propriedades, evoca a leveza, esta é acentuada pelo módulo vazado. As esculturas são acrescentadas de um novo elemento plástico: quando o espectador circunda certas obras elas podem variar da total opacidade à quase completa transparência. Modulam-se da forte presença à desmaterialização na trama geométrica de linhas esguias que enquadram o ambiente. A semelhança com a arquitetura, que já havia aparecido em muitas obras de madeira – as primeiras piramidais -, se acentua na fisionomia das obras de alumínio. O mundo da técnica, antes presente no raciocínio da forma, introduz-se – poderoso – no novo material. Com ele vem nova luminosidade cinza metálica que sempre irradia, quebrada, eventualmente, pelas intervenções cromáticas de cores fortes: azul, vermelho, verde. Diante da monotonia e pobreza da arquitetura contemporânea brasileira, cada vez mais distante dos brilhantes momentos de seu passado moderno, hoje, presente apenas nos projetos de Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha e algumas outras raras exceções, as esculturas de alumínio lembram maquetes de indivíduos arquitetônicos – edificações possíveis, como se quisessem livrar da completa mediocridade a nova paisagem urbana.

Assim, as abstratas piramidais passam a “figurar” a seu modo próprio pelo inevitável parentesco com formas arquitetônicas. Todo um ciclo da escultura moderna se condensa na obra cujas origens históricas se encontram no construtivismo russo da segunda e terceira décadas do século passado. A pesquisa planar no espaço, sua revolução em curvas. Da busca da emancipação no espaço à incorporação do peso e do lugar da escultura, até a incorporação do material como elemento determinante na sintaxe da obra quando assume a madeira in natura e o alumínio, toda uma trajetória rigorosa é traçada com rara economia de meios. Finalizando, com o retorno à arquitetura, não mais como acessório decorativo de seus espaços, mas prefigurando as possibilidades monumentais de edificações. Este o estado da obra.

 

A razão estrita de Ascânio, sua confiança cega nos preceitos construtivos chegam a causar um certo mal-estar no ambiente contemporâneo dominado pelo balaio pós-moderno, o vale-tudo e o relativismo generalizado. É como se a obra se constituísse numa espécie de dique de princípios desprezados pelo irracionalismo dominante. Reservatório de clareza, sua historicidade não pertence a seu tempo, com o qual seguramente não está de acordo, mas aos vínculos produtivos que estabelece com o passado, reiterando no presente uma estética que muitos querem superada. Contida, a obra não permite em nenhum momento uma experiência em que as regras não estejam claramente explícitas e diante do uso abusado das desconstruções, das paródias, e desprezo por qualquer norma, esta firmeza lembra uma arqueologia das luzes.

 


Notas

1 Por isso as esculturas de Ascânio lembram mais as obras de Riley ou de Reich do que a música de Phil Glass, posterior e mais fácil de ser assimilada.

2 A primeira importante exposição retrospectiva do construtivismo brasileiro só seria realizada em 1977: ‘Projeto construtivo brasileiro na arte — 1950-1962’. Curadoria de Aracy Amaral. São Paulo-Rio de Janeiro: Pinacoteca do Estado — Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1977.

3 Cabe lembrar que mesmo na sua geração, Ascânio não está sozinho nessa escolha. A pintura de Raymundo Colares, que toma como ponto de partida a gráfica das carrocerias de ônibus urbanos, se submete ao rigor construtivo. Antonio Manuel, que soube como poucos, na segunda metade do século XX, conciliar exigência formal com denúncia política, desdobra sua pintura numa pesquisa francamente tributária do construtivismo. Luciano Figueiredo, que, de início, torna-se mais conhecido como artista gráfico e pela pesquisa e trabalho de preservação em torno da obra de Hélio Oiticica, também estabelece os vínculos formais de sua obra com esta mesma tradição recente.

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