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A exterioridade e
o inconfesso segredo

Marisa Flórido Cesar, 2008

Conexão dos elementos, relação entre as partes, repetição. Não apenas a forma única – o movimento do seu aparecer, instante indivisível de uma doação aos olhos – mas a presença constante de um módulo, a repetição de uma matriz em um ritmo preciso construindo a obra. Forças lançando traçados dinâmicos, timbres desenhados no espaço.

Relação, conexão, repetição: algumas das operações de Ascânio MMM são engendradas por uma dúvida obstinada, uma racionalidade que enfrenta seus limites em incansável querela com si mesma. Seus relevos, estruturas e esculturas, em ripas de madeira ou perfis de alumínio, transitam por vezes no limite do desenho e da escultura. Entre o plano e o volume, o peso e a fluidez, a medida e o transbordamento, oscilam rigores e delicadezas.

A precisão construtiva, a investigação metódica e a exigência de um projeto, associados ao uso de uma modulação serial, fazem seu percurso, ao longo de 40 anos, único em meio a seus contemporâneos. A resistência ao acaso o conduz ao controle estrito desde o projeto à execução e à instalação das obras no ambiente. Mas se suas esculturas explicitam a austeridade racional ou a impessoalidade serial da indústria, também flexionam-se, sinuosas e suaves como em suas helicoides e curvas. “Fuga”, para permanecermos no léxico musical dos ritmos a que sua obra alude, em direção a uma poética singular, na voltagem limítrofe do gesto: o limiar entre sua ausência e presença na obra, entre a pura exterioridade e o inconfesso segredo. Poética que instaura um sistema – no sentido mais amplo da palavra – e ao mesmo tempo o tenciona.

 

Um sistema é um conjunto de elementos, princípios ou ideias, entre os quais, pode-se encontrar ou definir relações. Conectados, tendem a ser estruturados de modo a constituir um todo. Mas constituir um sistema supõe enfrentar a entropia que lhe é implícita: a falha fundamental e velada que ameaça transformar sua ordem. Todo sistema carrega o fantasma de seu colapso, assim como todo o otimismo referido às vanguardas construtivas é assombrado pelo terror das dissoluções e dos flagelos.

 

Na persistência do artista em dialogar com a tradição construtiva da arte, aloja-se a necessidade de testar sistemas e concebê-los como abertos e aptos a acolher novos problemas, a continuamente se modificar. Aptos a descobrir as diferenciações na repetição, o infinito nas relações. A enfrentar, assim, a iminente dissolução. Essa repetição contumaz não produz semelhanças, pois não é da ordem do idêntico, mas introduz, como na música, sutis contratempos. Introduz na pulsação da obra, na unidade abstrata da medida a partir da qual se estabelecem as relações, desvios íntimos. As torções no eixo, a decalagem suave, o corte em ângulo dos perfis, os jogos inauditos da geometria, são pequenos acidentes (contratempos) planejados e controlados. Aporia curiosa que conduz seu processo artístico.

 

Ascânio é um dos escultores no Brasil que mais possui obras instaladas em espaços públicos. Os materiais são explorados em suas propriedades estruturais, plásticas e cromáticas. Contudo, se nas helicoides e curvas o alumínio é pintado de branco, desenhando-se com leveza no espaço e inscrevendo-se na paisagem como uma unidade, nas Piramidais, ele é exposto. Piramidais são grandes estruturas aparafusadas em que perfis vazados formam uma trama ou grelha. Ao nos deslocarmos à sua volta, percebemos a escultura variando da total opacidade à quase completa transparência. Vacilando entre sua presença incisiva e energética no ambiente e sua desmaterialização, vai assumindo vários timbres e níveis de compacidade: ora veda a paisagem e manifesta-se como um corte voluntarioso no espaço (acentuado pelo caráter industrial do alumínio), ora emoldura a paisagem por trás de sua grelha até quase desaparecer, transparente e abstrata. Se em determinado ângulo de visão afirma sua contundência por outro, denega sua existência.

 

A série Estruturas, aqui em exposição, são derivações indiretas das Estruturas Piramidais. Desprovidas, todavia, da referencia à pirâmide e apoiadas na parede, exploram a grelha formada pelos perfis de alumínio, a composição de planos e suas interseções, os relevos e as sinuosidades, suas opacidades e rarefações. Tramas e superfícies invadem-se e estabelecem tensões cromáticas entre o metal prateado e a cor nele aplicada. Jogos entre a pintura e a escultura. Afinal, a grelha na tridimensionalidade pictórica, era a estrutura subjacente capaz de construir a ilusão da perspectiva no plano, o artifício da profundidade. Suspeitamos então que o inconfesso segredo adquire também desvios e variações sutis: aloja-se no colapso subjacente aos sistemas, nas estruturas que constroem as ilusões de ordem. Outra aporia da qual Ascânio MMM extrai a potência de sua arte.

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