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Ascânio MMM:

a construção da escultura

Lauro Cavalcanti, 2005

O Brasil é um país singular. Desde o modernismo as linguagens artísticas aqui se formaram pelas reinterpretações de correntes do hemisfério Norte. Releituras que não se limitaram a importar uma idéia, digeri-la e retransformá-la a partir de um organismo tropical, como desejava a Antropofagia. A operação tem sido um pouco mais complexa: nós brasileiros colocamos em relação correntes antagônicas, idéias irreconciliáveis e posturas opostas em seus berços de origem que, aqui, passam a adquirir novos potenciais combinatórios. Beneficiados por certa ousadia, a meio caminho entre a heterodoxia e o descompromisso salutar, nossos artistas e intelectuais têm logrado descobrir pontes, misturas e possibilidades que superam os impasses originais, ensejando olhares novos e menos redutores sobre tendências diversas. Foi assim com o improvável casamento entre inovação/tradição, geometria/subjetivismo e fenomenologia/construção.

Ascânio MMM é um artista cuja obra reúne várias influências e questões centrais na arte brasileira dos últimos cinqüenta anos. A sua produção mantém uma enorme coerência interna em domínios como o construtivismo, arquitetura, verdade dos materiais, dialética entre projeto e execução, arte em espaços públicos, tridimensionalidade e composição planar.

Durante muito tempo a base fundamental de seu trabalho era a ripa pintada de branco se deslocando através de um eixo. O branco tratava de nos fazer esquecer a natureza do material, concentrando o olhar nas curvas e volutas que o deslocamento provocava. Curvas de retas que articulavam a exatidão do projeto com o sonho e vertigem das espirais ascendentes. As peças poderiam ser de chão ou de parede. Estas, planares, contrariavam e reforçavam, a um só tempo, o plano. A partir do módulo da ripa e de um foco de luz Ascânio formava “esculturas” ou, melhor dizendo, construções. Isto porque ele não esculpia no sentido tradicional do termo: não retirava pedaços para dar novas formas a um volume, nem utilizava a matéria momentaneamente plástica para estabelecer formas que posteriormente adquiririam uma feição definitiva. As suas peças se formam através de um acúmulo ordenado de elementos. Estão, nesse sentido, mais próximas de questões e métodos de arquitetura. Volumes puros sob a luz. Luz e sombra corbusianos. Nada mais natural para alguém cuja formação inicial foi a arquitetura. A construção é, entretanto, a face mais visível e menos profunda das suas relações com problemas levantados pela arquitetura no século XX.

Uma das questões que Ascânio trata, de modo particular, é o aforisma miesiano de que “menos é mais”. Para Mies van der Rohe a assepsia devia instaurar um espaço ideal e exemplar que, através da nobreza dos materiais, fino acabamento e pouquíssimos elementos, estabeleceria um contraste e forneceria outros parâmetros ao homem imerso no caos visual e social dos tempos modernos. Ascânio retém todos os pontos desse programa, à exceção daquele referente à nobreza dos materiais. Instaura um minimalismo pobre, no qual a pintura branca supera as imperfeições dos finos pedaços de madeira. O minimalismo, por outro lado, é levado às últimas conseqüências com a criação de ritmo através de um deslocamento uniforme e obsessivo do módulo inicial. Não desprovida de certo humor e ironia, essa rígida estrutura acaba ensejando curvas que, entre a disciplina e a indisciplina, afirmam e negam a gravidade em movimento helicoidal.

Da arquitetura moderna brasileira Ascânio extraiu o casamento dialético entre van-guarda e tradição. Diferentemente do modernismo internacional, o novo modo de construir se instalou no Brasil rejeitando a oposição simplista entre invenção original e citação histórica. A arquitetura moderna brasileira, sobretudo através da figura de Lúcio Costa, fez complexa tal dualidade ao rejeitar toda sorte de cópias e pastiches e afirmar um parentesco estrutural entre as novas formas e aquelas do passado setecentista brasileiro. Os modernistas brasileiros estabeleceram uma ponte dialética entre passado e futuro, fundamental em um país onde era necessário um duplo movimento: aquele da construção da nacionalidade e o da modernidade tout court. A singularidade de nosso modernismo residiu na ação concomitante e dialética dos intelectuais no desejo de construção utópica de um passado e de um futuro para a arte e para o próprio país. Uma arte nova de–veria acompanhar os esforços de industrialização, assim como a necessidade de alargamento da população com acesso aos bens industrializados poderia incorporar tradições e culturas específicas.

Ascânio realiza em seu trabalho uma reinterpretação de alguns princípios internacionais da vanguarda, colocando-os em dialética com poéticas visuais locais. As suas esculturas guardam forte relação com o purismo construtivo através do deslocamento de peças a partir de um eixo central. Esse deslocamento gera um mergulho ascendente no espaço, alçando o corpo e o olhar em trajetória barroca. Se o seu trabalho se funda em uma racionalidade projetual ele é, por outro lado, completamente constituído no próprio processo de sua feitura. A presença do artista em todas as suas fases rejeita a idéia de uma obra meramente intelectual. O artista se confunde com o artesão e se afasta, nesse sentido, do arquiteto ou designer, profissões que podem se ausentar do processo de feitura, caso todos os passos e ocorrências possíveis estejam previstos e detalhados em um plano original. A própria engenharia das esculturas de Ascânio remete ao trabalho de movelaria de toda uma notável tradição artesanal luso-brasileira.

Confrontado com o desafio de realizar peças públicas em larga escala, Ascânio passou a utilizar perfis de alumínio. Primeiramente essa mudança se deveu a problemas de resistência às intempéries, mas o uso era praticamente o mesmo daquele das peças de madeira. Familiarizado com o material, Ascânio passa a explorar as suas características e a evidenciar o corte de seus perfis. Surgem as suas peças piramidais, compactas no espaço e permitindo que o ar e a luz se propagassem em alguns pontos vazados. As piramidais traziam evidentes conotações às pirâmides históricas e, também, alusões a arquiteturas utópicas do início dos anos 20. Se nos trabalhos de madeira os pares opositivos eram os de vanguarda/tradição, projeto/processo e construtivo/barroco, nas peças de alumínio vigoram os dualismos de racionalidade/misticismo, passado/futuro, compressão/verticalidade e cheios/vazados. As peças de alumínio acarretaram formas que foram experimentadas, posteriormente, em escala menor, nas piramidais em madeira.

Na primeira metade da década de 1980 Ascânio começou a fazer trabalhos em madeira aparente. Ao invés de neutralizá-las com a alvura da tinta, passa a se interessar por suas texturas, cores e aparências específicas. Enquanto as esculturas brancas enfatizavam a luz, sombra e, sobretudo, o movimento, as mesmas peças em madeira aparente retêm o olhar na superfície que passa a dividir o foco e criar tensão com o espaço que geram.

O trabalho de Ascânio que já demonstrava pontes com a pintura nos relevos de parede passa a ter uma característica pictórica mais presente na variedade de tons e texturas das madeiras diversas. Algumas de suas peças possuem espessura mínima, se comparada com as outras duas dimensões. A frontalidade da superfície é sublinhada e as peças formam um desenho no espaço que ecoa o desenho da sua superfície. As relações, anteriormente, apenas latentes, com a tradição de fina marcenaria luso-brasileira passam a ocupar um lugar mais proeminente em suas peças. E o processo ocupa, cada vez mais, um papel de importância igual ao do projeto. O tão temido aspecto decorativo aparece sem complexos e, de certa forma, poderíamos dizer que insuspeitadas filiações ao que se convencionou chamar de uma linguagem pós-moderna se insinuam no plano de construção. O uso de madeira natural ao invés da pintada de branco encontra outro paralelo arquitetônico com o uso de concreto aparente na fase final do alto modernismo brasileiro. Foi o caso de Affonso Reidy no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer no Palácio dos Arcos, de Lina Bo Bardi no Masp e outros exemplos de brutalismo paulistano.

A desistência do branco ideal poderia corresponder a certa desilusão com o papel modelar e com os poderes transformadores da arquitetura/arte em direção a uma sociedade ideal. A ênfase do material aparente evidencia o peso e a natureza específica da própria estrutura e a sensação de esforço substitui a de leveza. Nas esculturas de Ascânio, o abandono da pintura branca e imaterial faz surgir uma tensão entre a forma e o material natural que gera novas relações visuais.

Em algumas peças de Ascânio, como Fitangular longo, o humor é evidente e o desenho em ziguezague das madeiras mais claras e escuras enfatiza o seu perfil como os círculos concêntricos denunciam uma pedra recém-afundada na água. Certo ceticismo irônico passa a conviver com a vontade construtiva em uma peça que adiciona um comentário “pop”, mais precisamente oldemburguiano, às questões de escultura em madeira.

Freijó, maçaranduba, ipê, pau-marfim, jacarandá, pinho, cedro integram a palheta de suas esculturas. Por vezes Ascânio repete a mesma solução formal já experimentada com a pintura branca. A Formação 1, escultura que combina uma superfície reta e outra da mesma altura curva, ganha dramaticidade e um rendimento maior a partir do uso de ripas de pinho aparente.

Nas peças em madeira aparente – piramidais, formações ou fitangulares – a inventividade combinatória de Ascânio parece sem limites. Como uma serpentina jogada que sempre dá uma volta mesmo quando a julgamos já completamente esgotada. As esculturas dessa fase, na medida que derivam, igualmente, das peças alvas e daquelas em alumínio, constituem uma espécie de revisitação de toda a gramática visual de Ascânio, possibilitando-lhe novas criações e novos pontos de formações que pareciam não deter mais o seu interesse. As piramidais se tornam por vezes quase-caixas que se voltam sobre si mesmas em movimento de contração e foco no interior da escultura – as Piramidais 2, 3 e 11 são bons exemplos dessas peças que dirigem nosso olhar por um passeio pela superfície e, posteriormente, a um mergulho no âmago da escultura.

Duas de suas séries de paredes – as Guataias e as Elatas – se enquadram naquilo que Frederico Morais se referiu como pinturas hard-edges: relevos espaciais com superfícies compostas pelas cores dos diversos tipos de madeira que as compõem. As peças de madeira aparente reúnem otimismo, ceticismo bem-humorado e uma estética que não se envergonha da própria beleza. Esculturas, pinturas, desenhos, cruzamento de linguagens, testes de limite, objetos não-identificados e astrolábios do presente. Uma espécie de arquelogia do futuro possível para o métier de um artista brasileiro construtivo.

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