Ascânio MMM,
racionalidade orgânica
Guilherme Bueno, 2015
O conjunto de trabalhos expostos por Ascânio MMM na AM Galeria de Arte sinalizam uma nova questão em sua pesquisa artística de cinco décadas. A geometria – que para o artista sempre existiu como um sistema (um procedimento organizado e aberto de articulação de questões), nunca um dogma – assume certas estruturas “moles”, resultantes de discretos (porém efetivos) achados incidentais, capazes de tensionar a malha rígida do alumínio em curvas e torções em que a presença física do material se entrelaça a um arabesco de planos e volumes reais e virtuais.
A incorporação de elementos como o espelho em uma das obras, o uso comedido e preciso da cor em certos perfis, o jogo travado entre o plano da parede – onde algumas peças se instalam – a transparência do volume que admite a existência dessa mesma parede, ao invés de ocultá-la, bem como o transbordamento para o espaço explora de tal modo a relação volumetria × ”pictorialidade”, que convida-nos ainda a pensar como Ascânio soube, tomando de empréstimo um dado mais próximo à pintura (a cor), aprofundar uma questão manifesta em trabalhos de décadas anteriores.
Pensemos em suas esculturas brancas: nelas se priorizava uma luminosidade que ressaltasse a concretude do volume plástico – a “solidez escultórica”, em uma palavra. Em obras posteriores, quando a cor natural dos materiais passa a ser privilegiada, acentuava-se não só a carnalidade daqueles, mas também se integralizava com franqueza a dinâmica modular desenvolvida, valorizando as graduais secções combinadas de volumes ou sua repetição “arquitetônica”.
Temos nos trabalhos de agora um cruzamento dessas duas abordagens capaz de explorar ora avanços e cortes empreendidos pela cor, ora momentos em que a cor ensaia “prensar” bidimensionalmente alguns volumes e, por conta disso, alterna a profundidade de volumes reais (o prisma gerado pelos módulos) e virtuais (o espaço interno dos mesmos e os outros pequenos prismas formados pelas dobras da malha metálica), como se percebe, por exemplo, na haste vermelha que retorna uma das peças para a parede, ou o uso do espelho para paradoxalmente negar e afirmar a virtualidade da parede de suporte da peça, fazendo com que o reflexo da malha fure visualmente a mesma e crie uma profundidade que, em meio ao caos ordenado de planos que se acumulam, presta homenagem à perspectiva renascentista.
Há duas questões que parecem se afigurar como chaves da concepção de escultura de Ascânio: a primeira é sua ênfase em preservar – mesmo (ou justamente por conta) empregando frequentemente materiais industriais – uma certa artesania do trabalho. Em outras palavras, não quer dizer que ele ainda precise serrar perfis metálicos, mas sim que ele identifica nos gestos construtivos de uma peça (o aparafusar mais ou menos frouxo, a adição de mais uma fileira de módulos, o interesse pela luminosidade comparada entre o estado natural de um material ou da sua condição espacial quando adicionada a cor) brechas intuitivas para uma empiria produtiva, como se, a título de comparação, ele agisse como um arquiteto que não delimita a obra a seu projeto, mas admite em sua execução que novas soluções possam se desenvolver. Em se tratando de sua trajetória profissional – que, aliás, passaria alguns anos concentrada na arquitetura – poderíamos pensar que ele interessou-se não apenas pela questão da escala dada pelo “modulor” de Le Corbusier (1887-1965), mas igualmente pela franqueza orgânica e sincera do emprego dos materiais em Frank Lloyd Wright (1867-1959). Esse parece um dado essencial para chegarmos a segunda questão, a de como tais princípios lhe permitem uma abordagem livre da geometria.
O artista, cedo se interessou por problemas como a participação do espectador (como se observa em suas primeiras realizações – a exemplo das Caixas, 1968 e 69) e uma atitude mais fenomênica da geometria, como testemunharia no neoconcretismo, atento incialmente às multiplicações morfológicas dos Bichos de Lygia Clark (1920-1988) (como ele mesmo afirma) e, a meu ver, mesmo que menos diretamente, em Amilcar de Castro (1920-2002) (pelo modo segundo o qual a forma desenvolve-se atenta a sua existência física no espaço relacionada a sua explícita materialidade) ou, ainda, em uma abordagem mais genérica, na percepção de como os artistas daquele movimento foram capazes de aprofundar uma questão de espacialidade (mesmo que, no caso deles, na maioria das vezes, pictórica) e ajuste de planos por uma redução cromática extrema. No entanto, como observa-se mais a frente em seu percurso, Ascânio revelara a mesma disponibilidade frente a geometrias “desviantes” e construtividades como a de Arthur Luiz Piza, indóceis a uma atitude pré-determinada e programática. Assim, se ele atentara para a geometria, jamais isso se dera nele arraigado a vinculação a um programa. Ou seja, a geometria não existe mais como um imperativo semântico que carrega consigo a mensagem de uma superação do passado, como inevitavelmente se passara na abstração racionalista dos anos 1950.
Com isso, quando dissemos acima que ela não lhe vem como algo apriorístico, é justamente porque ele não partiu da geometria, vendo-a como algo absoluto – princípio e fim de toda a visualidade – , outrossim compreendendo-a como o melhor modo de delimitar o campo de suas questões plásticas e tectônicas. Indo além, o entrelaçamento desta com os materiais, ao invés de promulgar uma eulogia mitificante e nostálgica de uma “era de ouro” perdida (como se nota regularmente em certa produção contemporânea acomodada em uma elegia de nosso passado construtivista, revestida de certa auto-indulgência), entende que o nó mais interessante na relação entre material e forma pode se dar na ambiguidade do material negar a reificação da geometria (e vice-versa) ou, ao contrário, que a geometria acentua a potência física e ótica do primeiro, ao conter qualquer (falsa) impressão de efeito virtuosístico na consecução dos volumes. A beleza desse princípio – para além, é óbvio da beleza clara das obras – é dele ser bem sucedido justamente em alcançar para o que seriam objetos ou materiais “frios” e impessoais como o espelho e as peças de alumínio uma organicidade ímpar (sem recorrer a nenhuma simulação de “manualidade”), adquirida naqueles manejos construtivos a que Ascânio MMM se permite investigar no seu ofício cotidiano de ateliê.