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Geometria oscilante

Felipe Scovino, 2022

O conjunto dessas obras aponta não só as últimas criações de Ascânio MMM, todas produzidas nesse ano, mas o seu compromisso em criar múltiplas percepções sobre a obra, tornando-a um campo aberto de possibilidades. Vou adensar esse ponto mais a frente. Desde os anos 1960, quando iniciou sua trajetória artística, Ascânio pesquisa o signo construtivo e mais particularmente as possibilidades de virtualização de suas esculturas e objetos no espaço. Ascânio pertence à geração seguinte ao neoconcretismo (1959-1961) e, portanto, seu olhar foi construído vendo uma diversidade de associações metafóricas abrangendo arte, corpo e arquitetura. Sua proximidade com Lygia Pape fez com que percebesse que as incisões sobre a madeira que ela realizava em suas xilogravuras denominadas Tecelares (c. 1953-1960) pudessem ser percebidas como veias, transmitindo um aspecto orgânico a algo essencialmente técnico. Ou ainda tivesse contato com os desenhos no espaço de Franz Weissmann, feitos a partir de esculturas pesando toneladas sendo sustentadas por poucos pontos de fixação. Todavia, se Ascânio vincula-se a um conjunto de artistas que se notabilizou pela chamada “vontade construtiva”, embebidos não só pelas investigações em torno da abstração geométrica mas pela arquitetura, é certo que ele construiu seu próprio caminho e poética.

Argumentarei um pouco mais sobre a sua poética e sua política de distinções. Suas icônicas Caixas (c. 1968-69), por exemplo, celebram a instância do jogo em sua obra. Ao movimentar as peças geométricas que ficam no topo da caixa, não só Ascânio concede ao espectador a oportunidade da criação mas traz o acaso como fator de construção da obra. Seus Módulos e Relevos, realizados ao longo dos anos 1970, com suas concepções modulares em série, transmitem a possibilidade do espectador especular sobre a sua continuidade no espaço, fazendo com que essas obras tendam à multiplicação infinita. Para além disso, o que existe é a ideia de uma torção do espaço. A forma sinuosa e desobediente de suas esculturas traz uma sensualidade a esse meio que poucas vezes foi vista. E essa imagem é formada a partir de esforços e concepções matemáticas, na construção projetual de uma poética modular. Ascânio pensa os seus módulos de madeira – e, mais recentemente, de alumínio – como forças ativas que desencadeiam não só metáforas acerca do corpo mas ativam, na práxis, o corpo do espectador. Suas obras não se pautam numa discussão sobre massa ou volume; são translúcidas porque querem, exatamente, criar agenciamentos, embates e encontros entre elas e o corpo do espectador. Querem ser atravessadas, tocadas, usadas assim como desejam ser percebidas como projeções virtuais no espaço.

Essa rápida passagem pela obra de Ascânio pontua seu interesse por uma obra que mesmo articulada por princípios matemáticos, constituída por meio de módulos e serializações, busca a relação ilógica, o desequilíbrio, a ação do corpo, o signo da torção, ou melhor a formulação da fita de Moebius[1] como metáfora para a não dissociação entre interior e exterior, dentro e fora e como princípio de revelação de contínuas e infinitas possibilidades de transformação da forma.

As obras aqui expostas se baseiam na qualidade de serem cambiáveis, não correspondendo integralmente às premissas formalistas da escultura, especialmente por instaurarem a ideia de instabilidade. A série Quacors é produzida em forma de grid a partir de uma sequência de perfis de alumínio unidos por parafusos. Esses estão frouxos o suficiente ao ponto de se movimentarem ao sabor de um sopro de ar mais intenso. Para além de seu padrão geométrico e as relações intrínsecas entre cor, forma e olho, a característica cinética da série é ainda mais acentuada por essa “engenharia” muito peculiar concebida por Ascânio, articulando a imaterialidade (o vento ou o deslocamento de ar), o som produzido e as novas propriedades para a malha geométrica.

Essa série intercala perfis vazados, deixando aparente os parafusos, com perfis preenchidos por módulos que se adequam como uma pequena caixa ao interior do perfil. Estas caixas são pintadas em tons monocromáticos, evidenciando o interesse cada vez maior de Ascânio pela cor. Sempre associado à escultura, o artista dessa vez se aproxima do ambiente pictórico. A cor torna aparente um gesto, uma pincelada sobre o grid metálico. Mais do que isso ela concebe um senso de construção do espaço. É a partir da cor que percebemos os jogos visuais e o aspecto lúdico do trabalho do artista. Notem que a cor igualmente pode aparecer nos perfis vazados, quando apenas o seu perímetro externo é pintado de forma também monocromática. Aliás, o vazio tem um lugar relevante nessa série: ele não é nulidade ou negatividade, mas um agente de construção. É na relação entre perfis preenchidos e vazados, pintados ou não, que se fazem não só as articulações geométricas de cor e espaço, mas as características de dinâmica e velocidade da série. Tudo está em constante movimento e acontecendo sobre um grid que opera sobre certa maleabilidade. São várias camadas de tempo e de possibilidades de engendramento dos jogos cromáticos oferecidos pela obra. Alia-se a isso o fato de que ao nos movermos frente a Quacors, outras possibilidades visuais são oferecidas. É a mesma e outra obra. Por exemplo, um olhar frontal não percebe outras possibilidades de jogos visuais que são produzidas entre os perfis vazados com o seu perímetro externo colorido e os de perfis totalmente preenchidos assim como a relação entre luz e sombra. Nesse caso, quando a luz incide sobre o perfil vazado com a borda pintada, o seu interior ou, se quiserem, a parede propriamente dita, é banhada por uma luminosidade derivada da cor do perfil. A cor cria um prolongamento para além do suporte físico em que se encontra e se expande pela área determinada pelo perfil. Essa ação, como um encadeamento contínuo, nos leva a outra característica ímpar dessa série de obras: não há distinção entre figura e fundo pois a parede não é suporte para a obra mas parte intrínseca dela. A parede se torna o lugar para um campo de experiências envolvendo cor, luz e espaço.

 

Sem qualquer relação projetual que anteceda a execução da obra, isto é, a obra não é concebida mediante um desenho técnico, esquema ou manual, Quacors são produzidos a partir de testes realizados no ateliê com Ascânio avizinhando cores e invariavelmente dispondo, rearranjando e deslocando os perfis. Essa instância da casualidade tão premente no seu trabalho já acontece, portanto, na própria concepção da obra. O espaço do ateliê, para Ascânio, é o local em que projeto e execução se misturam.

Tão importante quanto a participação do espectador é a forma como Quacors convoca uma relação corpórea. Por mais que a movimentação do nosso corpo em relação a obra seja uma condição, diria, intrínseca para a contínua percepção e reformulação da obra, o que é definitivamente solicitado é o olho. E para além das inúmeras constituições de forma e cor que são elaboradas nesse movimento do espectador em relação a obra, há uma situação bem peculiar e intrigante: é o olho quem percebe as dúvidas que a obra elabora. Por exemplo, a forma como o artista dispõe a cor e por sua vez constrói os “desenhos” sobre o grid, pode vir a apresentar uma geometria irregular. Ocasionalmente triângulos equiláteros dividem o espaço com formas irregulares que possuem medidas diferentes na composição de seus lados. São formas descontínuas que são fabricadas também a partir de módulos faltantes, de uma estrutura de débito. Elegi a palavra “dúvida”, nesse caso, como sinônimo de falta, de incompletude, sendo o olho, aquele quem media e apreende essas experiências. Diria, ademais, que outra qualidade da obra de Ascânio é o fato de estar continuamente produzindo formas (ou imagens ou jogos visuais) que tendem a escapar, isto é, são da ordem do fugidio e do transitório.

A ideia de uma geometria cambaleante, no sentido de sempre estar a oscilar, se faz sem dúvida também nas duas esculturas da série Prismas. Produzidos também a partir de perfis de alumínio e com suas estruturas translúcidas, os dois Prismas têm algo de inacabado. Novamente, a percepção de uma irregularidade se coloca. Parecem ser partes de algo maior, resquícios de um canteiro de obras. Por conta de sua composição em grade, assemelham-se, se essa comparação for possível levando em conta todas as radicais diferenças, a blocos de concreto translúcidos. Não possuem base e são sustentados por pontos de fixação formados a partir de ângulos originados de sua própria estrutura.

Os Prismas são estruturas permeáveis ao olhar. São continuamente furados pela nossa visão. Não são obstáculos, pelo contrário, são elementos aglutinadores pois conclamam a nossa investigação. Como toda obra de Ascânio precisam ser rodeados, descobertos, percebidos, ter suas partes eventualmente tocadas. É impressionante o fato de como um material frio, com fins técnicos e atrelado a indústria da construção como o alumínio, passa a ser um mediador de experiências fenomenológicas. Em sua obra, ganha outro destino e caráter. Sua estrutura em grid cria laços com Quacors já que ambos têm a cor como índice de construção de formas. Parte dos perfis tem seu perímetro pintado em tons monocromáticos. Além de promover a aparição de novas formas geométricas sobre o grid, como observamos nos Quacors, a cor funda um espaço. É ela quem proporciona a possibilidade do Prisma ganhar outras possibilidades de formatação. Ao contorná-lo, novas visadas são percebidas. Ascânio recusa as formas fáceis e impositivas e reivindica outros compromissos para a escultura. Tudo está para acontecer pela primeira vez. Diria, finalmente, que a tensão estrutural armada nessas obras deixa à mostra, de forma incessante, o empenho exigido para retirar as coisas do repouso. O espectador que contorna a obra espera pelo plano subjacente e anseia pela superfície de onde são desencravadas as formas. Nesse movimento de passagem que leva sempre à concretização de espaços, a obra de Ascânio abre-se para o exterior, ou melhor, projeta-se como uma narrativa que infindavelmente cria sucessivas dobras.

 

[1] Nesse caso refiro-me mais especialmente às séries Quasos e Qualas, produzidas ao longo da última década.

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