Piramidais de Ascânio MMM: transparência e opacidade
Fernando Cocchiarale, 1999
[texto para a exposição individual Piramidais IV de Ascânio MMM no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 25 de novembro de 1999 a 2 de janeiro de 2000]
Ascânio MMM é provavelmente o único escultor brasileiros de sua geração que vem trabalhando na via aberta pelos princípios técnicos propostos pelo Construtivismo russo: trabalha a partir da articulação de partes e não do bloco único, característico da escultura tradicional (desbaste da madeira ou da pedra e a fundição), e constrói obras que se nutrem essencialmente das relações que estabelecem no espaço em que se encontram.
Não podemos, entretanto, considerar a obra de Ascânio fiel às propostas construtivistas, tal como foram produzidas em sua gênese, no período da revolução soviética, ou tampouco uma herdeira natural do Construtivismo brasileiro, Concreto e Neoconcreto, dos anos 1950. A utilização do elemento modular por MMM, isto é, de um elemento único cuja repetição é indispensável para compor a obra, diferencia consideravelmente seu trabalho da produção construtiva russa (c. 1920) e da brasileira (c. 1951). Estas produções jamais se utilizaram, como a de Ascânio, da modulação.
Tatlin, ou mesmo Gabo e Pevsner, produziram suas obras espaciais combinando, por encaixe, colagem, soldagem, etc, elementos que embora geométricos (ripas, formas de dimensões e materiais diversos), não eram modulares, pois pertenciam a fontes formais diferentes e desempenhavam, na estrutura da obra, funções diversas.
Por outro lado, o Concretismo e o Neoconcretismo, principais vertentes do projeto construtivo brasileiro, parecem não ter exercido qualquer influência direta – técnica, formal e espacial – sobre a produção do arista, mesmo a seriação, característica de muitas das poéticas pictóricas do Concretismo e também da obra de Ascânio, é antes uma coincidência do que um traço legado por essa vertente ao seu trabalho. O mesmo podemos dizer dos planos em superfície modulada de Lygia Clark, de natureza espacial e funcional bastante diversa da dos módulos de MMM, uma vez que são planares e diferenciados entre si.
A modulação na obra de Ascânio talvez tenha origem na sua formação em arquitetura. Entretanto desde o início de sua produção, por volta de 1966, podemos notar pontos em comum com a então nascente Minimal Art, que lançava mão da seriação modular para criticar a subjetividade na arte, exacerbada pelo Expressionismo Abstrato americano da década anterior. Como os minimalistas, MMM vem construindo seu trabalho são só com elemento , quanto com materiais de origem industrial.
Elemento do mundo objetivo da seriação típica da indústria, o método construtivo e a modulação foram importados para o campo da arte pelas tendências mais racionalistas da arte moderna não só com a intenção de objetivá-la enquanto produto, como para criticar a ênfase no papel da subjetividade na produção estética: no lugar da expressão, que flui da interioridade do artista, o projeto, intelectualmente concebido.
A extrema simplificação dos elementos da escultura de Ascânio não corresponde, porém, integralmente, à estas expectativas estético-ideológicas do construtivismo histórico e do Minimalismo, pois foi pensada para facilitar o pleno exercício artesanal. Como em um jogo de armar, a intervenção direta do artistas, em todas as fases do trabalho, é aqui indispensável e fundamental. Trata-se de uma racionalidade regulada pelo fazer e, por isso mesmo, contrária ao pensamento puro. Lugar de dúvidas, impasses e soluções, a construção de MMM integra conceito e execução. Mesmo assim, não há, aqui, a intenção de substituir a razão pela empiria. A origem intelectual da forma geométrica permanece e reverbera nos trabalhos, embora sobredeterminada pelo processo criativo do artista. Somente um envolvimento sistematicamente físico, sensível e intelectual poderia produzir uma poética construtiva tão peculiar quanto a de Ascânio, que se apropria dos métodos e técnicas do mundo impessoal da indústria para subjetivá-los numa poética visual específica.[1]
As obras Piramidais recentes, que integram a série iniciada em 1989, apresentam novidades em relação às produzidas anteriormente: a decisão de pintar de uma só cor (azul, vermelho, branco, preto, etc.) as faces das obras, permite uma espécie de reverberação semântica[2] gerada pelo contraste das áreas coloridas, com aquelas dos perfis de alumínio anodizado, módulos indissociáveis dos Piramidais.
Simultaneamente, a pintura introduz, no âmago da obra tridimensional de MMM, uma pulsão planar, suscitando a realização de Piramidais na parede.
Os perfis de alumínio resultam do seccionamento, em um certo ângulo, de um paralelepípedo. Possuem quatro faces cheias e duas vazadas. Dessas características do módulo (angulação e faces positivas e negativas) resultam esculturas formalmente diversas, mas que apresentam algumas faces impenetráveis ao olhar, outras parcialmente vazadas e, lados quase transparentes. Sombra, luz, opacidade e transparência, elementos essenciais da pintura, tornam-se nos Piramidais elementos de singularização dessas obras tridimensionais de Ascânio.
Suas esculturas de perfil de alumínio destinam-se, antes de tudo, ao olhar. Como na pintura, só a visão, jamais o tato, pode perceber a alternância entre a solidez e a leveza, permitida pelas áreas cheias e vazias, ao deslocarmo-nos à sua volta.
A exploração da potência dos espaços positivos e negativos nas obras tridimensionais é, sem dúvida alguma, uma questão construtiva. No Brasil, assim o demonstram as esculturas de Amilcar de Castro e Franz Weissmann, os Bichos de Lygia Clark, e muitas Concreções de Luis Sacilotto no entanto, diferentemente das obras dos artistas mencionados (que exploram a percepção simultânea dos espaços negativos e positivos), o sistema modular de Ascânio cria uma tensão de alternância da percepção desses espaços. Conforme a movimentação do espectador, apresentam-se ora vazados, ora como superfícies contínuas: sobre essas últimas, MMM passou a pintar, recentemente, camadas monocromáticas que enfatizam, ainda mais, sua opacidade em relação aos pontos de vista mais translúcidos dos Piramidais. A cor, portanto, não só possibilita o coerente desdobramento do espaço real para a parede, como prepara a surpreendente possibilidade de vermos através de um volume sem massa (tal como havia observado Naum Gabo a respeito do Construtivismo), dependendo, é claro, do ponto em que estejamos situados.[texto para a exposição individual Piramidais IV de Ascânio MMM no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 25 de novembro de 1999 a 2 de janeiro de 2000]
Processo semelhante de alteração perceptiva ocorre com os Piramidais de parede.
A espessura dos módulos, que faz com que a face fechada das esculturas se assemelhe aos degraus de uma escada, impede-nos defini-los como pinturas. São, na realidade, relevos que tratam dos mesmos elementos visuais da escultura – transparência e opacidade – só que limitados pela visão frontal das peças. Produzidos a partir de um único elemento, os Piramidais de Ascânio MMM demonstram que a invenção pode enriquecer-se e desdobrar-se sob limites mínimos: limites que, no caso, abrem-se para além da configuração objetiva dos trabalhos, apontando para os jogos de luz, sombra e cor, origem de qualquer experiência visual.
[1] As ideias desse parágrafo foram retiradas de texto sobre Ascânio MMM, de minha autoria, publicado no catálogo de exposição do artista, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1994.
[2] Que evoca a distinção cultural entre pintura e escultura: a transitividade e indefinição desses meios na arte contemporânea; a diferença entre a visão retificada pela experiência tátil (Renascimento) e a visão isolada em suas próprias premissas físicas, a percepção de luzes e sombras (Barroco, Impressionismo, fotografia, etc).