A universalidade construtiva e a contingência da percepção
Guilherme Wisnik, 2019
As peças espaciais de Ascânio MMM têm uma vocação pública, que denota seu vínculo de base com a tradição construtiva e, mais especificamente, uma proximidade com a arquitetura, e com a noção de estrutura. Daí que muitos dos seus trabalhos tenham sido instalados em espaços abertos, fora de galerias ou museus.
Nascido em Portugal, em 1941, o artista emigrou para o Brasil em 1959, desembarcando no Rio de Janeiro em pleno momento de efervescência da arte construtiva e da arquitetura racionalista. Brasília, em construção, estava a um ano de ser inaugurada. E o otimismo daqueles “anos dourados”, sob o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e a emergência da bossa nova, marcavam a experiência do país com a promessa de um salto sobre o seu atraso congênito: o passado colonial, a tradição escravocrata e a indigna desigualdade social. Modernidade como “promessa de felicidade”,[1] forjada por uma singularíssima “civilização de praia”, segundo as palavras de Tom Jobim.[2]
Construída em um dos momentos de maior efervescência política e cultural na história do país, a nova capital é a expressão máxima de uma arquitetura que está associada, no plano da cultura, a um novo padrão estético, que podemos dizer sofisticado sem ser aristocrático. Não por acaso, as produções desse período nas artes plásticas, na música popular e na poesia, além da arquitetura, condensam um lento processo de amadurecimento cultural que encontra ressonâncias fora do seu contexto de origem, ganhando considerável expressão mundial. Nas artes plásticas, superando o compromisso edificante e nacionalista dos artistas modernistas, tais como Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Na música popular, incorporando influências do jazz, e depurando a pulsação sincopada do samba sob a continuidade prosódica da língua falada, com a bossa nova. Na poesia, radicalizando a discussão formal, baseada na noção de estrutura, e considerando-a algo intrinsecamente ligado ao conteúdo. E, na arquitetura, construindo uma cidade inteira no cerrado, figurada em edifícios simbólicos, já muito distantes da influência inicial de Le Corbusier.
Brasília é, portanto, um elo importante na estreita relação entre projeto estético construtivo e desenvolvimentismo ideológico, fazendo pesar para o lado da universalidade o pêndulo da “dialética do localismo e do cosmopolitismo” através da qual o crítico literário Antonio Candido definiu a “vida espiritual” brasileira.[3] Isto é: o projeto estético da abstração, dos anos 1950 e 60, é um desdobramento do movimento cultural de libertação dos recalques locais (históricos, sociais, étnicos) iniciado com o modernismo na década de 1920, balizado pela noção de Antropofagia. Com efeito, como uma segunda volta do parafuso, ele desloca aquele movimento para o lado do universalismo.
O projeto e a construção de Brasília se dão, portanto, em meio à vitória da arte construtiva no Brasil – em paralelo à criação de instituições como a Bienal de São Paulo (1951), o Museu de Arte de São Paulo (1947) e o Museu de Arte Moderna (1948) –, e ao correlato adensamento de um objetivo comum entre as diversas artes visuais no país, dando subsídios para a ideia de uma versão local da “síntese das artes” europeia. Síntese esta que figurava a cidade de Brasília como o produto maior do projeto das vanguardas modernas. Ideia que foi, diga-se de passagem, subscrita por figuras de peso como Max Bense, importante semiólogo alemão e professor da Escola de Ulm. Pois Brasília, segundo Bense, “é a primeira expressão visível de um cartesianismo na forma do design”. Isto é, a materialização de “um design total análogo à ideia de uma obra de arte total, um enorme reservatório, tanto da inteligência técnica quanto da artística, e representação não casual, mas necessária dessas forças sintéticas num espaço prospectivo da civilização.”[4]
É nesse contexto que Ascânio desembarca no Brasil. Apesar de tropical, o país, através de sua cultura moderna pujante, era a sede um novo cartesianismo aos olhos do mundo. É o que as palavras de Bense nos fazem lembrar. Daí a “poética da razão”[5] destilada por Ascânio a partir daquele momento, mirada, em grande medida, na produção tanto de artistas concretos e neoconcretos, como Luis Sacilotto e Franz Weissmann, quanto de arquitetos racionalistas, como Jorge Machado Moreira, MMM Roberto e Affonso Eduardo Reidy. Sintomaticamente, ele veio a estudar artes plásticas na Escola Nacional de Belas Artes, entre 1963 e 64, transferindo-se em seguida para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi aluno entre 1965 e 69, e se formou. Nesse contexto, circulou no fértil ambiente da arte neoconcreta do Rio de Janeiro, nos salões e exposições do Museu Nacional de Belas Artes e do Museu de Arte Moderna, junto a figuras como Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Frederico Morais.
E se o espírito do tempo já apontava para a afirmação de uma “vontade construtiva” nas artes, como antídoto às tendências irracionais e personalistas da sociedade brasileira,[6] o temperamento pessoal de Ascânio reforçava essa tendência, enxergando a escultura, a arquitetura, a matemática, o design e a engenharia sob uma mesma mirada, baseada no imperativo manual e industrial do cálculo, do projeto e da precisão. Isto é, pensando a escultura pelo prisma da regularidade da forma, e da montagem de peças produzidas em série, num ateliê que é uma espécie de usina. Com efeito, sua obra não expressa apenas o legado da fria razão construtiva, aproximando-se também daquilo que poderíamos chamar de uma geometria sensível. Pois, como bem observou Paulo Herkenhoff, “o vigor de Ascânio sempre decorreu da oscilação entre a lógica da matemática e a emoção estética da forma”.[7] Daí que, pelo mero agenciamento de espaçamentos crescentes ou decrescentes em seus módulos geométricos seriais e regulares, o artista consiga gerar formas orgânicas entre eles, como parábolas e espirais, tal como vemos nas séries Quadrados e Caixas, de 1968, como se do choque de quadrados mondrianescos irrompessem ondas espirais de seções áureas, como as que vemos no Modulor de Le Corbusier. Torções volumétricas que estão mais próximas do mundo orgânico do que do referente cartesiano, mas que não deixam de estar presentes em exemplos importantes da arte e da arquitetura do período, que serviram de baliza para a produção de Ascânio. Refiro-me a exemplos como a Coluna neoconcreta de Weissmann (1957), a escada espiral do MAM de Reidy (1953), e os desenhos urbanos de George Candilis, Alexis Josic e Shadrach Woods (anos 1950 e 60).
Tendo essas questões em mente, é possível pensar nos trabalhos de Ascânio mostrados na Casa Triângulo, em São Paulo. Dependendo do ângulo pelo qual olhamos as suas peças espaciais – Quasos e Piramidais –, elas assumem aspectos mais sólidos ou mais vazados, dada a profundidade dos perfis utilizados. Também com as leves cortinas feitas de módulos de alumínio e parafusos (Quacors) acontece algo semelhante: suas distâncias em relação à parede provocam sombras cambiantes, e o halo de cor que se produz a partir das pinturas de faces laterais dos módulos cria ambiências sutilmente escapadiças, variáveis conforme o ponto de vista do espectador. Isto é: em ambos os casos há uma relação dialética entre a universalidade de sua matriz construtiva, e o dado contingente da experiência que cada pessoa estabelece com os trabalhos e o ambiente ao seu redor.
Todas as peças do artista são construídas segundo princípios claros (perfis modulares, encaixes e parafusos idênticos), mas as percepções que temos delas são ambíguas. Essa é uma questão crucial do trabalho de Ascânio: a idealidade da forma é temperada pela contingencialidade da percepção. Daí que ele oscile entre as fixações rígidas das peças maiores, feitas para garantir a estabilidade da forma e do volume em grande escala, e as articulações flexíveis das cortinas e malhas, nas quais a folga entre parafusos e perfis permite uma certa acomodação fluida, dinamizando o rigor das estruturas, e dando à geometria uma certa organicidade mais próxima da vida. No jogo de ambiguidade entre o bidimensional e o tridimensional produzido por esses Quacors, uma ambiência esquiva é criada. Nítida “vontade de forma”, por um lado. Abertura às indeterminações variáveis da vida, por outro.
Ainda nessa mostra, a tipologia piramidal, remetida a formas históricas totêmicas, se combina a um novo trabalho mais aberto e abstrato (Quasos/Prisma 1), cuja escala permite que as pessoas adentrem o seu espaço interior e o atravessem. Sua consistência diáfana denota um diálogo intenso com a arquitetura moderna, para a qual a diluição de fronteiras entre dentro e fora é algo fundante na construção de uma espacialidade contínua. E, não por acaso, o volume da peça se afina ao tocar delicadamente o solo para flutuar no espaço, tal como nos pórticos seriais do MAM do Rio de Janeiro, ou em inúmeras obras da arquitetura de São Paulo, como o Ginásio do Clube Atlético Paulistano (1958), de Paulo Mendes da Rocha, e a Garagem de Barcos do Iate Clube Santa Paula (1961), de Vilanova Artigas. Um penetrável etéreo, postado no centro da galeria, como uma arquitetura dentro da arquitetura. Um portal da leveza, sem portas nem fronteiras. Metáfora ainda resistente da cultura de um país que imaginou saltar por sobre o seu atraso em direção a um futuro bonito e solidário.
Notas
[1] Ver Lorenzo Mammì, “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, Novos Estudos n. 34. São Paulo: Cebrap, 1992.
[2] Tom Jobim, A vida de Tom Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora Rio Cultura/ Faculdades Integradas Estácio de Sá, 1982, p. 62.
[3] Ver Antonio Candido, “Literatura e cultura de 1900 a 1945 (panorama para estrangeiros)”, in Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
[4] Max Bense, Inteligência brasileira: uma reflexão cartesiana. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 32.
[5] Ver Paulo Herkenhoff, Ascânio MMM: poética da razão. São Paulo: Bei Comunicação, 2012.
[6] Essas tendências irracionais e personalistas da sociedade brasileira estão descritas e analisadas em Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda.
[7] Paulo Herkenhoff, 2012, op. cit., p. 11.